Quebradinha: nossas quebrada inteira em miniatura
Foto: Léu Britto
Aviso aos navegantes: esse texto não foi escrito em português. A filosofa preta e brasileira Lélia Gonzalez chama nossa língua de “pretuguês”. Nois chama de gíria... “gíria não, dialeto.”
“Mas aí: minha área é tudo que eu tenho, a minha vida é aqui.”(Racionais MC’s)
“Mas aí: minha área é tudo que eu tenho, a minha vida é aqui.”
(Racionais MC’s)
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Uma criança preta olhando pra uma goma sem reboco com um pixo na parede escrito SAUDADE DO VEIO. Um dia bonito, uma família dando um pião, mó lua. Podia ser um sabadão normal em qualquer favela do Capão, de Itaquera ou da Brasilândia, mas era um dia – sepá não tão normal assim – no Centro Cultural São Paulo, na Vergueiro, bairro de São Paulo que tá longe de ser uma favela e a casinha sem reboco tinha só alguns centímetros. Se eu fosse transformar a exposição Quebradinha: Escrevendo o hoje para que o amanhã não fique sem ontem do Marcelino de Melo Gadi (Nenê) em uma fotografia, seria essa. Parafraseando o Racionais: olha só aquela arte que daora, olha o pretinho vendo tudo do lado de dentro. Cada detalhe minucioso esculpido com toda delicadeza e sensibilidade do mundo fazia com que cada uma daquelas esculturas te puxasse pra ver mais de perto. Sabe aquela sedução que só a quebrada sabe ter? As artes do Nenê convidavam cada corpo a se curvar um pouco perante a grandeza daquelas miniaturas pra enxergar o quão rico são os detalhes que compõe o humilde reino onde moram tantas pessoas do Brasil – e do mundo afinal, favela é favela em qualquer lugar.
Créditos: Leu Britto
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Quebrada, de acordo com o dicionário da língua portuguesa é um substantivo feminino que pode significar:
1. Declive ou aclive em monte ou em terreno ondulado; LADEIRA: "rimbombos se prolongavam indefinindamente pelas quebradas." (Marques Rebelo, "Vejo a lua no céu"in Contos reunidos.))
2. Curva em estrada.
3. Depressão estreita e profunda em terreno, cadeia montanhosa etc., ger. produzida por erosão da água.
4. Lugar afastado.
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Na nossa criptografia de favela, nas nossas gírias, no nosso dialeto: quebrada é o jeito que a gente chama nossa área, nosso pedaço, nossas favelas. É mais do que o lugar onde a gente mora e dorme, é o lugar onde a gente aprende a ser gente, é o terreno onde se criam Margaridas, Rosas, Jasmins. É a terra onde a Dona Ana acorda cedo pra preparar o café, pentear o cabelo da neta e levar ela pra escola; onde o Alemão põe a mochila nas costas e encara um busão que tá mais pra lata de sardinha; onde o Touro e o Monstro dão o sangue e o suor na lojinha pra garantir a mistura do mês mas sonhando em comprar uma nave e uma mansão maior que a do boyzão que comprou o twitter e quer enviar uma nave espacial pra lua; onde o Buiu chega quase meia noite da faculdade e as vezes vira uma garrafa de café pra estudar pra última prova do semestre; onde a Raíssa inaugura seu salão de manicure. Isso tudo e mais um pouquinho não cabe no dicionário e a arte que vem daqui quase nunca coube nas exposições.
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Eu chamaria o artista Nenê de gênio caso essa palavra não fosse usada quase sempre pra definir alguém que faz algo antes nunca visto (como se isso fosse possível) mas eu prefiro chamar de criativo, de zika, de monstro, de inteligente e sobretudo: ancestral vivo. O talento que ele herdou é sequência do talento de gênios como o Paraíba, o Bahia, o Zé, o Serjão, o Pernambuco e vários outros engenheiros e arquitetos sem diploma que a quebrada forma todo dia, trabalhadores – com vulgo de estados/cidades do Nordeste – que construíram e constroem essa cidade, seus centros e suas margens. São os pedreiros que atravessam a cidade espremidos no vagão e constroem os prédios da cidade grande. São esses artistas que voltam pras suas quebradinhas e invadem algum terreno pra erguer um barraco pra família. “Pedreiros são artistas porque mulheres foram lideranças” dizia o escrito numa enxada que compunha a exposição. Quebradinha é, segundo o dicionário, o diminutivo de quebrada que é, segundo o mesmo dicionário, um substantivo feminino assim como: favela, criança, memória, luta, liderança, esperança.
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Voltando pra casa eu vi um menor, um gigante e pequeno artista, pixando num muro JUSTIÇA E LIBERDADE e foi ali que eu entendi o que talvez queira dizer a frase: Escrevendo o hoje para que o amanhã não fique sem ontem. Ver as nossas quebradas representadas em miniaturas é a certeza de que a vida vai melhorar, o progresso vai constar, o Touro e o Monstro vão conseguir uma nave pra roletar pela cidade toda, o Buiu vai se formar e fazer seu intercâmbio fora do país e ainda assim nossa memória será mantida e preservada, afinal como canta o MC Paulin da Capital: “O gueto foi o berço de onde eu vim, por isso eu represento 100% a quebrada onde eu nasci.” Nosso amanhã terá um ontem: era isso que estava escrito nos olhos de uma criança preta vendo a miniatura de uma casa tão parecida com a sua sendo representada em uma escultura e apreciada por tantos e tantas dentro de uma exposição.
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