Julia e sua tropicalidade compondo um Fado Tropical.

Texto e curadoria de imagens por Julia Sandim

16.07.2021

JULIA SANDIM

Até pouco tempo, eu não estava familiarizada com o conceito de “curadoria”. Nos dias atuais, com a ampla oferta de redes sociais e plataformas como Pinterest, Tumblr e o próprio Instagram, o hábito de reunir imagens em diversas páginas ? os moodboards visuais que combinam esteticamente – é tão natural e automático quanto sempre estar atualizando o feed. Diversas páginas voltadas às culturas criativa, vintage ou atual têm como fonte essas mesmas redes sociais e vice-versa.

Dessa forma a seleção das imagens da @fado_tropical se iniciou antes mesmo da criação da página. O Tumblr é uma plataforma que oferece uma diversidade de conteúdo não apenas de imagens, mas de citações, textos, vídeos e áudios de músicas com a possibilidade de manter um arquivo que mescle todo tipo de conteúdo. Ali, além de fotografias de fotojornalistas brasileiros e estrangeiros, que visitaram a América Latina e o Brasil, eu, Julia, também fui descobrindo a literatura, a música e as artes visuais.
Manifesto Antropófago, Oswald de Andrade.
No começo, não me atentava a datas, e as fotografias chamavam minha atenção pela estética, mas passei a ficar fascinada pela forma que várias delas se pareciam com lembranças minhas, em anos diferentes, vividas por pessoas diferentes, embora nos mesmos espaços. O fotógrafo Bruno Barbey foi responsável por capturar alguns desses momentos. Quando vi, pela primeira vez, o registro do casal abaixo no carnaval de 1980, lembro-me de identificar a paisagem atrás deles ? um ponto conhecido e rotineiro ? e me visualizar ali como estive várias vezes: de manhã, na Central do Brasil, voltando para casa, 40 anos depois.
Foliões voltando para casa no carnaval, 1980, Rio de Janeiro. Bruno Barbey.
O fascínio por essas lembranças compartilhadas foi crescendo conforme mais imagens recordavam hábitos não só da vida urbana no Rio de Janeiro, mas de outra fase pessoal que vivi na região Amazônica, cujo lazer não consistia em esperar amanhecer para voltar para casa em viagens de 1 hora de transporte público, e sim na tranquilidade de ter o Rio Negro próximo como uma piscina no quintal de casa.

Era como registros em diferentes espaços-tempos, precedendo o que seria meu cotidiano, meu modo de viver dois extremos do mapa. E de tantos outros brasileiros.

Não só fotografia documental, mas toda possibilidade de expressão de ontem que traduz o hoje e nos une em espaços físicos distantes.
Manaus, Amazonas, 1966. Bruno Barbey.
Gabriel García Márquez, escritor colombiano e meu autor favorito, é considerado o precursor do realismo mágico na literatura latino-americana. Em Cem Anos de Solidão, na fictícia cidade de Macondo, existe a trama sobre a greve de operários da empresa de extração de banana do vilarejo. Quando me deparei com a fotografia abaixo, feita na cidade de Salvador dos anos 80, que exibe um caminhão recheado de cachos de bananas, o primeiro pensamento que veio à minha mente foi a imaginária e mágica Macondo. Como uma simples fruta tropical ? além da alusão à “república das bananas” existente no livro, um termo pejorativo geralmente relacionado a países latinos politicamente instáveis ? pode representar uma ligação entre um lugar fictício e outro real?
Salvador, Bahia, 1980. Rosalind Fox Solomon.
Ilustração de Carybé para a edição brasileira de Cem Anos de Solidão.

O nosso passado dita as manifestações culturais não apenas do presente, mas também do futuro.

Muito além de recurso estético, essas imagens são responsáveis por documentar a formação de visuais e diferentes modos de viver que ultrapassam nossas fronteiras internas e imaginárias mesmo após décadas. E o que é a nossa identidade enquanto brasileiros? Além de elementos como o carnaval, o samba, a floresta amazônica, o futebol, um felino tropical, a “sensualidade” ... Quais imagens além dessas estão presentes no nosso inconsciente?
Uma onça desliza pela superfície de uma piscina tropical brasileira. Dmitri Kessel, 1959.
Gabo, como é carinhosamente chamado, declarou em 1996, durante uma entrevista, que a nostalgia é a principal matéria-prima do que ele escrevia. A nostalgia (pelo que vivi e pelo que não vivi) é, no meu caso, também a maior inspiração além da busca de representação ? uma forma de escape para (re)visitar lugares, paisagens e sensações conhecidas. Um lugar debaixo de folhas de palmeiras no balanço de uma rede, ao som de uma canção de Caetano interpretada por Gal Costa, de vozes de vendedores ambulantes transitando, de uma mulher sentada na janela observando a rua, de meninos tomando de banho de rio, ou até mesmo do gosto de cravo e canela.
“Rio”, fotobook de Bernard Hermann. 1978
Em contrapartida à facilidade de acesso a mídias na internet por meio de plataformas como o Instagram, baseadas em algoritmos que incentivam um processo de publicações visando ao engajamento, a curadoria de conteúdo ainda é uma atividade para a qual a sensibilidade da observação humana é imprescindível. Esses imaginários e visuais do cotidiano e do habitual, sobrepondo sua aparente simplicidade, têm uma potência de inspiração e criação ampla, embora aquilo que nunca é visto seja entendido como sinônimo de criar, de inovação. Novas narrativas se constituem em um processo ramificado mais abrangente.

Identificar raízes, bases e referências conhecidas e explorar a vastidão das suas possibilidades é uma chave de acesso a histórias compartilhadas e ao futuro.

Paraíba, 1979. Francresc Catalá Roca.